Meu trabalho de conclusão de curso
Faixa-título do álbum HOLY LAND, Angra (1992)
A minha paixão por música
me salvou em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Foi assim que, depois de crises depressivas e ansiosas, depois de altos e baixos emocionais, consegui encontrar na música um motivo para engajamento no término do curso de História.
Deixo com vocês, meus amados leitores, um pouco sobre a minha pesquisa para a montagem da monografia, um pouco das fontes e dos caminhos de pesquisa e análise. BOA LEITURA!
A memória em Holy Land do Angra: algumas leituras históricas/musicais
BENTO, Suellen Soares. Artigo escrito para pesquisa de TCC pela UFSC, 2019.
Introdução
A música enquanto fonte histórica tem se tornado cada vez mais sugestiva para pesquisas históricas nas academias. Isso não é um mero acaso. Vem como resposta de um afloramento que sugeriu novas perspectivas teóricas datadas do final do século XX e começo do XXI (sejam históricas, ou de outros campos do conhecimento) que permitem a apropriação de novos tipos de fontes de pesquisas, e que consequentemente revelaram, por assim dizer, laços estreitos entre sociedade, comportamento e música. Perceber nuances melódicas, composição de letra e arranjos musicais como frutos de um tempo/contexto não é mais somente capricho por hobby, mas metodologia de pesquisa, se tratando dos trabalhos acadêmicos relacionados à musicologia teórica e à musica em si.
Com a música propriamente dita virando fonte de pesquisa, não poderíamos negar a forte evidência que nos é revelada quando a consideramos em nossos ensaios e estudos – música e sociedade estão intrinsecamente conectadas, complexamente amarradas e por consequência, podem esporadicamente revelar marcas de comportamento social e de experiências de diferentes sujeitos pertencentes de seus contextos. Por ora, dadas suas proporções, a música - em suas diferentes facetas - confessa seus métodos para estabelecer discursos, perpetuar estereótipos ou manifestar-se como forma de resistência rebelde ao seu contexto sociocultural.
Neste presente trabalho, dentre várias explicações que se podem dar para a escolha da temática, reforça-se uma demanda contumaz presente, mesmo nestes tempos mais abertos em toda a história da pesquisa histórica, relacionadas à dificuldade de maioria dos profissionais da História em abraçar outros campos do conhecimento e correlaciona-los à sua pesquisa. Haja vista História e musicologia de vez ou outra flertam entre si, mas dificultosamente reconhecem sua união ou harmoniosamente mantêm suas particularidades, como vemos resumidamente no artigo do doutorando Icles Rodriges[1], da Universidade Federal de Santa Catarina.
A fonte de reflexão e pesquisa utilizada no presente trabalho é o álbum Holy Land (Terra Santa ou Sagrada), composto e executado pela banda de Heavy Metal brasileira Angra, lançada em março de 1996. O álbum, que é conceitual e um dos mais famosos e bem recepcionados da banda, traz em suas letras e com o suporte melódico a narrativa em primeira pessoa sobre a História do Brasil no período da vinda dos portugueses à terra de Vera Cruz. A narrativa se desenvolve sob a perspectiva dos sujeitos retratados, sugerindo ideias sobre os embates iniciais entre os selvagens do novo mundo (em território brasileiro) e dos brancos, ao que parece, no sentido de enxergar e confrontar os dois pontos de vista. No álbum, também aparecem referências aos negros escravizados, posteriormente.
Fazendo uma análise mais despretensiosa e esporádica sobre contexto, arranjo e melodia do álbum em questão, nos apropriando da leitura histórica e musical sobre o próprio álbum, dentro em sua conjuntura de produção, pretende-se aqui estruturar alguns ensaios e reflexões sobre que tipo de memória – podendo ou não estar interligada com a construção da memória coletiva do passado construídas através dos séculos – em relação a estes embates e de como estes são representados no álbum em questão. Antes disto, será discutido brevemente sobre a chegada do Heavy Metal no Brasil, e as origens da banda Angra profissionalmente. E conforme formos expondo algumas destas interpretações sobre letra e música, incorporaremos algumas breves teorizações históricas para entendermos essa construção, mesmo que minimamente.
A primeira parte do trabalho será voltada a uma efêmera exposição do cenário Heavy Metal no Brasil dos anos 1980 e 1990, quando o gênero tentava emergir e sobreviver frente a inúmeras dificuldades, ao passo de que foi o período de maior popularidade, divulgação e lapidação do gênero. Além disso, falaremos brevemente sobre momento de formação da banda e as demandas do mercado fonográfico brasileiro e internacional da época, e do público consumidor do estilo. Em seguida abordaremos o contexto de desabrochamento e produção do conceito proposto para o Holy Land, preparando caminho para algumas análises de duas músicas componentes do álbum, tendo como foco a questão da memória representada nas letras e melodias.
2. Contextualização do álbum Holy Land
Uma breve história do Heavy Metal brasileiro
O Heavy Metal, sobretudo aquele que adveio das mais legítimas raízes do Rock inglês/estadunidense nos anos 1970, vem como um movimento de rebeldia frente a uma sociedade de ideais e comportamentos conservadores e religiosos num período de intensa fervura de ideias juvenis nos anos anteriores – entretanto, leva de diferente consigo o peso das guitarras distorcidas, o volume estridente, riffs rápidos e complexos e os drives vocalizados, sem contar do estereótipo profano e diabólico que fascinava os mais fanáticos na época.
Com as muitas incorporações e vertentes surgindo ao longo dos anos, o Heavy Metal se espalha pelo mundo sem timidez, atingindo jovens que se transformam então em um grupo com características visuais semelhantes, mesmo que a cultura regional interferisse ferozmente nestas relações intersociais, o que pouco atrapalhou a ascensão da emergente identidade headbanger ao redor de todo globo, e que atingiria locais inimagináveis como a China, Índia, oriente médio, lugares onde a cultura ocidental costuma agredir preceitos culturais oriundos de tais sociedades.
No Brasil, o Heavy Metal chega aos poucos nos anos 1980 num movimento que acompanhou a reabertura política seguida da Ditadura Militar dos últimos anos – desde o começo da década já era manifestada, mesmo que timidamente, o agrupamento de algumas bandas pioneiras fortemente influenciadas pelo Heavy Metal estrangeiro, no esforço de estabelecer e legitimar a existência de uma real cena de Metal no país. Entretanto, foi no ano de 1985 que marcadamente o Brasil conheceu de fato o universo Heavy Metal dentro de seu território, na primeira edição do Rock in Rio:
“Mesmo com todas essas contradições[[2]], o universo de Heavy Metal consegue ser notado no Brasil e aparece para o grande público após o festival Rock in Rio. Aparece num momento marcante para a sociedade brasileira, o período de redemocratização do país, após vinte anos de Ditadura Civil-Militar, quando o país olhava para dentro de si e procurava valorizar as ideias nacionais e sua cultura popular. Nesse momento, o “alienígena” Heavy Metal surge entre nós, exatamente na metade da década, no ano de 1985, através de um festival recheado de astros estrangeiros.”[3]
A chegada do gênero do metal pesado no Brasil vem dentro de um movimento que se estende desde o fim da Segunda Guerra Mundial através da mídia em geral, principalmente pela TV, radio e na imprensa, que podemos chamar de “cultura de massas”[4]. Lojas especializadas, que na época eram raríssimas, davam acesso aos conhecedores e admiradores do estilo disponibilizando camisetas, posters e vinis à venda, possibilitando o contato sutil com as bandas de vanguarda do gênero, como Iron Maiden, Deep Purple, Kiss, Metallica e Black Sabbath, as grandes influenciadoras no gosto musical dos metaleiros brasileiros nos anos 1980. Vale lembrar que o acesso a esse tipo de material era de difícil acesso, e isso os pioneiros do metal brasileiro sempre reforçam nas entrevistas: instrumentos e aparelhagens geralmente eram precários, e os músicos que pretendiam divulgar suas bandas através de discos tinham grandes dificuldades no cenário – o Rock in Rio mostrou ao Brasil não somente a modernidade dos equipamentos e a excelência das novas técnicas musicais, mas também revelava os meios para a realização do sonho de mostrar o potencial do Heavy Metal brasileiro ao mundo.
Para o momento referido, era comum que o público atingido pelo Metal pesado (especialmente no Brasil) rejeitasse qualquer outro tipo de expressão e estilo musical, inclusive a musica popular veemente divulgada e aceita na época já que estamos falando de reabertura, numa mobilização de brasilidade e busca por uma identidade cultural. Essa negação do público Heavy Metal é visivelmente expressa pós Rock in Rio principalmente em revistas fanzines, mostrando que os fãs rejeitaram piamemente a atuação de celebridades nacionais consagradas como Erasmo Carlos, Rita Lee, Gilberto Gil e Barão vermelho[5]. E não obstante, endeusando Ozzy Osbourne. Esse comportamento de rejeição e conservadorismo do público Headbanger se consolidou durante os anos posteriores, e as bandas nacionais do gênero tentavam ganhar espaço frente às gigantes inglesas e estadunidenses. A banda Stress, formada em Belém do Pará, é oficialmente a primeira banda de Heavy Metal no país, que iniciou suas reuniões no ano 1974 como uma banda de rock, e desenvolvendo sua identidade de som mais pesado ao longo dos anos, gravam seu primeiro disco somente em 1982. Outras bandas como Korsus, Metalmorphose, Virus, Harppia, Salário Mínimo, Inox, Overdose e muitas outras não citadas são deste contexto inicial do Heavy Metal brasileiro, e conhecem bem o ambiente hostil e inóspito da indústria musical para o gênero no Brasil. E que permanece assim até hoje.
2.2 O Angra e suas influências
O Angra não chega nem perto de ter vivido o período underground e obscuro do Heavy Metal brasileiro nos anos 1980, nem tampouco os trancos e barrancos pra conseguir minimamente gravar em discos de vinil. Mas certamente é fruto do esforço destes pioneiros, que constantemente tentavam modelar uma identidade Heavy Metal, frente o estrangeiro. O próprio André Matos, vocalista do Angra desde 1992 até 1999, já tinha experiência no Viper (1985) com 13 anos de idade, e conheceu bem a dura luta por um espaço efetivo no pequeno cenário de Metal pesado que se formava em seu país. Rafael Bittencourt, guitarrista do Angra, aos 14 anos de idade formou sua primeira banda, em 1986 de nome Lixo Atômico, que, movida pelo movimento punk, tocava covers de Ratos de Porão, Garotos Podres, Cólera e Camisa de Vênus, todas bandas nacionais. Não que o Angra tem começado da forma mais precária possível, como muitas dessas bandas nacionais da época, muito pelo contrário – o Angra teve o privilégio de ter começado de forma estruturada, planejada e com o apoio de estúdios e gravadoras estrangeiras.
O heavy metal não foi criado no Brasil. “É um estilo que nós importamos”, ressalta Rafael, em uma entrevista para o Cifraclub[6]. - Portanto, somos brasileiros tocando rock pesado no estrangeiro. “É como se um alemão viesse tocar samba no Brasil, reconhecemos que evidentemente não é musica de raiz”. Segundo ainda o guitarrista, ocasionalmente qualquer gênero ou subgênero precisa de uma constante reciclagem, incorporando e ressignificando elementos novos pra que ele continue no cenário em exposição. Foi isso que o Angra fez – sutilmente no primeiro álbum em 1993, Angels Cry, com a música Never Understand – apropriando-se do folclore e de ritmos brasileiros pra trazer novidade para fora, que esporadicamente era bem recebida pelo exterior – muito por causa do exótico, um mundo a parte dos polos centrais do Heavy. É evidente que as diversas incorporações de outros ritmos no Metal aconteceria, visto que muitos países e culturas importaram o estilo. Mas, ainda segundo os músicos do Angra, essas incorporações devem ser feitas cautelosamente e com o suporte fiel do público atingido, já que, como já foi dito anteriormente, os headbangers costumam rejeitar o diferente, o que está longe do contumaz seus ouvidos, do Metal tradicional.
Na gênese do Angra, em 1991, o cenário do Metal no Brasil já se estabelecia. O Sepultura, no começo da década, conseguira por hora exportar o som thrash (com influências do Venom, Slayer, etc.) e exótico para os grandes polos consumidores do estilo, apostando num som mais agressivo e mórbido – que agradava consideravelmente os ouvidos naquele momento – com um ensaio cauteloso na incorporação de algumas percussões latinas. As influências do Angra, diferentemente do Sepultura e de outras bandas no cenário eram muito diversas, indo do rock inglês do Queen até a bossa nova e MPB do Brasil, além claro, da música clássica erudita, por conta da formação musical de André Matos e de Rafael Bittencourt, ambos formados em Composição e Regência. Quando Rafael teve a ideia do projeto, sua intenção sempre esteve ligada à incorporação da presença das brasilidades no conceito de banda e de composição. A escolha do nome é uma mistura de “Angry”, furioso no inglês, e Angra, na mitologia tupiniquim, que significa “Deusa do Fogo”.
O Angra é de fato uma banda enquadrada no subestilo Power metal/ metal melódico, subgênero ainda novo no contexto, que surgira nos anos 1980 e que ganhava holofotes no início dos anos 1990 em todo mundo. Essa escolha de identidade musical se deu muito por conta da mistura de influências musicais dos membros da banda, mas também pelo interesse principal de exportar o conceito Angra para o mundo, principalmente no Japão e Europa, que ocasionalmente convergiu para o Power Metal. Mas eu ainda arrisco a dizer que, mesmo considerando o “padrão” das bandas Power/Progressive como Helloween e Gamma Ray, o som do Angra sempre soou com um feeling diferente de todas essas outras citadas – provavelmente por conta das incorporações de ritmos e folclore brasileiros, que veremos mais a frente.
Depois do sucesso do álbum Angels Cry (1993) no Japão e na Europa, conquistando diversas premiações e elogios de vários ícones do Heavy Metal na época:
Este disco rendeu ao Angra uma extensa turnê no Brasil, abrindo shows para o AC/DC e dividindo o palco com as bandas KISS, Black Sabbath e Slayer, na versão brasileira do festival Monsters of Rock. Foi com as imagens deste show, com um público de aproximadamente 50 mil pessoas, que o clipe de “Carry On” foi produzido. Com o sucesso que eles alcançaram nessa turnê e o lançamento do disco na Europa, a banda saiu numa pequena turnê por alguns países europeus, como Alemanha, França e Itália. Esses primeiros shows fora do Brasil foram muito importantes para o Angra, que começou a montar uma base fiel de fãs [...][7]
A banda ganhava espaço no cenário e mais opções para continuar exportando o som ao estrangeiro, na possibilidade se tornar, juntamente com o Sepultura, precusora do Heavy Metal brasileiro. Assim, com sucesso e apoio, puderam no álbum seguinte esboçar mais liberdade e originalidades nas ideias iniciais de formação do conceito de banda.
2.3 Ideia, conceito e composição do Holy Land
Foi logo depois da volta cansativa da turnê mundial do Angels Cry de 1995, que por acaso exigiu muito de todos os músicos da banda (inclusive, trouxe problemas sérios para a voz de André Matos), que os 5 membros do Angra – Rafael Bittencourt, André Matos, Kiko Loureiro, Luis Mariutti e Ricardo Confessori – se retiraram por três meses no interior de São Paulo em um sitio da família do Rafael para compor a maior parte do que seria o Holy Land. O conceito crucial do disco, que permearia todas as letras e melodias, já tinha sido definido ainda quando estavam em turnê, que trataria da história da chegada dos europeus em terras americanas, no século XVI. A proposta era de trazer a temática histórica do descobrimento “buscando referências da música brasileira, europeia renascentista e de elementos musicais que traduzissem uma multiculturalidade brasileira”[8]
Em uma entrevista na MTV[9] – que a propósito é do contexto de lançamento do álbum – André, Luiz e Rafael comentam sobre as influências musicais presentes na composição do disco, bem como as leituras e pesquisas que tiveram de fazer durante construção da narrativa histórica dentro das letras, que foram feitas baseadas em enciclopédias e “livros antigos de História”. O mapa que ganha destaque no encarte frontal visto na capa do CD é uma junção complexa e muito inteligente de vários mapas históricos dos séculos XVI e XVII. Mas por qual motivo se deu a escolha dessa temática? Seria arriscado, evidentemente, que uma banda recém nascida como o Angra, que ainda procurava ganhar espaço e estabilidade na indústria musical Heavy, escolher tal temática para um novo trabalho, visto que o mercado nos anos 1990 se tornava cada vez mais exigente, e não dava espaço para falhas nem infelicidades por escolhas desacertadas. Criticas pesadas dos veteranos no Metal mundial poderiam destruir de vez o sonho do sucesso e reconhecimento.
Parte do encarte do lado frontal do disco
(Holy Land – Angra, 1996)
O contexto de produção e lançamento do Álbum coincidiu com duas situações muito específicas do contexto dos anos 1990. A primeira delas é a comemoração (isso mesmo, “comemoração”) dos 500 anos da chegada dos espanhóis à América – comemoração da Espanha, sobre o descobrimento – que inclusive mantêm o feriado nacional de 12 de outubro como o dia da Hispanidad até hoje. A palavra comemoração, dadas as circunstâncias, nos soam dissonantes, vide os massacres e destruição que resultaram em anos de repressão e desigualdades sociais na América Latina inteira. Vale lembrar que o Brasil também estava perto de contemplar os cinco séculos de chegada dos portugueses, e que na virada do século, haveria uma forte movimentação em discutir o referido fato histórico e rever seus impactos na sociedade brasileira através de seminários, debates, filmes, conferências, exposições, show e uma infinidade de outros eventos.
O outro marco neste contexto de produção do álbum era de um clima geral na nação, desde a reabertura política com o fim do Regime Militar no fim dos anos 1980, em se encontrar motivos para constituir uma identidade brasileira ou da brasilidade, de um orgulho e um otimismo para a retomada de um crescimento sócio-politico-econômico no país. Além, claro, de reestabelecer uma democracia inabalável e soberana no país novamente, o que sabemos, até os dias hodiernos nos parece muitas vezes uma farsa declarada. Essa busca por uma identidade nacional, aliada à crise política e econômica que ocorria desde o começo dos anos 1990 é claramente encontrada no discurso dos próprios músicos da banda, na justificativa para a escolha da temática conceitual para o Holy Land:
“[..] Eu acho que é uma coisa que tá acontecendo com a história do Brasil... o povo em geral tá resgatando um patriotismo [...] Tá todo mundo nessa, um clima de otimismo. As coisas estão se transformando no Brasil, muita gente com vontade de trabalhar, com boas intenções... O povo brasileiro por natureza é um povo otimista sabe... Que se fode, se fode, mas não perde a esperança e otimismo, e isso é uma coisa que tá voltando a acontecer, meu... todo mundo querendo aprender capoeira [...] querendo ouvir musica brasileira, sabe... Vamos se voltar pra nós! Vamos deixar de ser ignorante...”[10]
Nesse sentido, nossa intenção neste momento é entender a justificativa para o conceito da composição do álbum dentro de uma perspectiva representativa e memorialística condizentes como o momento histórico e a dissimulação de um imaginário de brasilidade no Brasil da década de 1990. De que forma essas questões de cultura nacional e de discurso social estariam implícitas nas melodias e letras das músicas que compõem o álbum? Em citação à Stuart Hall,
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades.[11]
E ainda, nesse resgate de uma história que por muito tempo contou apenas o lado dos vencedores e negou as atrocidades e a participação dos nativos americanos na construção dessas identidades nacionais em toda a América Latina, seria possível identificar que narrativa sobre de memória da História do Brasil queria-se consolidar num álbum de Heavy Metal, intencionalmente feito para o público estrangeiro? Nas palavras da professora de História Emanuela Francisca Ferreira Silva, interpretando Le Goff,
“Memória é um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou informações que ele representa como passadas”. Percebe-se aqui que, é a memória que auxilia o sujeito na sua percepção de mundo. Atualizando o passado, a memória faz com que cada pessoa possa ser capaz de remontar o seu presente a cada instante já, se colocando como sujeito que interage e reflete no mundo em que vive.” [12]
A seguir, faremos algumas análises rápidas de duas letras/melodias componentes do álbum, que representam bem as problemáticas que já foram colocadas anteriormente. Em alguns momentos serão citadas outras músicas, pois todas as letras se complementam, dificultando assim a análise isolada de cada uma das músicas.
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Letra e Melodia – análises e interpretações
O álbum Holy Land (1996) contém dez musicas, na seguinte ordem:
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"Crossing"
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"Nothing to Say"
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"Silence and Distance"
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"Carolina IV"
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"Holy Land"
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"The Shaman"
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"Make Believe"
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"Z.I.T.O."
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"Deep Blue"
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"Lullaby for Lucifer "
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"Queen of the Night" (Faixa bônus no Japão)
Logo depois da intro “Crossing[14], “Nothing to say”, música de abertura do álbum, vem com a proposta de chocar o público com os riffs pesados da guitarra, os pratos da bateria descompassados junto com os bumbos que dão base à guitarra, dando o compasso regular do início da música que permanece intensiva e progressiva ao longo de sua execução. A batida é uma espécie de baião mais acelerado. A música surgiu, segundo Ricardo Confessori, no quando estava sozinho na sala fazendo alguns grooves aleatórios em seu instrumento. Foi aí que os outros membros saíram correndo do quarto para a sala, pois ouviram arranjo de bateria que posteriormente seria da parte inicial da Nothing to Say. Os riffs iniciais foram feitos na intenção de serem pesados aos ouvidos (como é comum no Heavy metal) e ao mesmo tempo bem simples em apenas um acorde (Mi maior, que eu diria ser uma nota mais altiva, imponente) com um efeito de guitarra mais “seco” e metálico acompanhando a batida da bateria, dando ao arranjo mais agressividade. Depois dessa entrada, que se tornou marca registrada de Confessori e da história do Angra, também são incorporados teclados e de orquestras.
Aliando Crossing à Nothing to Say, podemos perceber algumas intenções na abertura do álbum. Vejamos a tradução letra na integra:
“Há muito tempo, o mesmo céu sob mim; / “É tão solitário quando o sol se põe / Um dia chegou quando éramos um: / - Armas em punho, nunca se render! // Oh, eu vi os lampejos de ouro / Nós matamos e morremos conquistando um mundo virgem / Os princípios corrompidos pela fama // Vivendo hoje e para todo o sempre / De volta ao meu lugar, tenho / Nada a dizer // Culpa e vergonha, é tudo tão insano / Deuses pagãos morrem indefesos / E nós não podíamos ir mais adiante / Cavando os túmulos de nossas consciências // Oh, os sons, eles ainda ecoam / Todos nós vagando em mares de sangue / A esperança escondida por trás do horror // Vivendo hoje e para todo o sempre / De volta desta terra eu tenho / Nada a dizer / Vivendo hoje e para todo o sempre / Por tudo que resta eu tenho / Nada a dizer // Oh, quantos anos se foram / Toda manhã privo-me do amor / O amor erguendo-se do sofrimento // Vivendo hoje e para todo o sempre / De volta ao meu lugar tenho / Nada a dizer”. (MATOS, 1996. Tradução de João Vitor de Carvalho Madureira)”
Vale destacar que em várias entrevistas, os integrantes da banda confirmaram inspiração nas obras de Fernando Pessoa, inclusive trazendo uma frase do mesmo autor na parte traseira do encarte. O que podemos entender inicialmente, com toda gama de informações, é que a música anuncia a chegada do desbravador português, ao que parece, sob o olhar do futuro sobre o passado, onde o narrador aparente da música ou o “eu lírico” (que pode ser um português, reconhecendo-se como participante e descendente deste desbravamento) lamenta com martírio a cegueira pelo ouro e pela conquista, negando os preceitos católicos de amor ao próximo e a modéstia ao dinheiro em prol da expansão marítima e territorial. A frase principal e que dá nome a música, Nada a dizer, revela o silêncio pela falta de qualquer justificativa pelas barbáries e destruição causadas pelos estrangeiros do além mar em terras brasileiras. Considerando o contexto histórico, notamos aqui uma abordagem reflexiva relativos os jogos de poder inclusos na história da colonização e em toda história da humanidade, não de um jogo entre bem ou mal, mas de ações movidas pela prevalência e ambição de determinadas sociedades/povos, que sugerem muitas vezes guerras e violência.
Outra faixa importante e que ganhou destaque em relação às outras canções é faixa Carolina IV. Segundo André Matos, a faixa resume basicamente a ideia central de todo o álbum, a trama proposta no conceito. É umas das musicas com mais incorporações de variedade de ritmos, dando a impressão de ser um compilado rítmico de todas as outras, por isso bem resume o álbum, como já dito. A balada inicial, muito dançante e envolvente, é semelhante às batidas de percussão do Olodum, dividindo espaço com uma guitarra rítmica preguiçosa, que lembra muito também o uso da guitarra no axé music (que é um pouco mais rápida do que encontramos na em Carolina VI), tornando seu início um tanto épico, em tom de deslumbre. As partes mais lentas da música nos dão a sensação de calmaria e de êxtase. Já as que são em ritmo Speed Metal, de excitação e conquista.
Nesse inicio também encontramos em voz de fundo um pequeno refrão em português, fazendo alusão ao poderio do mar:
"Salve, salve Iemanjá,
Salve Janaína
E tudo o que se fez na água
Jogam flores para o mar
Deus salve a Rainha
E o meu passo nessa esfera...
Um caboclo de orixás
Logo deixa a Terra
Vai de encontro à sua sina
Onde o céu encontra o mar
Achará seu porto
E é assim que isso termina..."
Esse verso já nos mostra o que a letra da música de fato representa: a narrativa, que provavelmente se dá sobre a experiência de navegação no navio ocasionalmente chamado de Carolina VI, que desbravou os mares em busca das riquezas de novas terras e da conquista de dominar o mar e as técnicas de navegação. Aqui, há uma mistura de diferentes contribuições culturais, incorporando inclusive a herança africana presente no Brasil, da religião e da crença em Iemanjá (entidade advinda da cultura Iorubá e muito cultuada em terras brasileiras em religiões afrodescendentes) e na soberania do mar, aliadas à veneração do narrador pelo mar imponente e bravio. Ao longo da passagem de tempo da música, temos a sensação de que estamos sendo preparados para um ambiente encantador da aventura e da descoberta, que é muito bem complementado pela letra, relatando sobre as viagens dos tripulantes do Carolina VI no mar, que se perdem em sua imensidão, um mar ainda desconhecido e cheio de mistérios – dentro do contexto histórico, nos remete aos mitos que circundavam na Europa sobre tudo o que se sabia sobre os oceanos, que poderiam guardar criaturas horrendas, ou mesmo um abismo sem fim. Ao mesmo tempo, temos homens desbravadores que já obtém técnicas e experiências que dão possibilidade ao homem de navegar para outros lugares, por meio do mesmo mar misterioso. Até que sucessivas tormentas assolam o navio pouco a pouco, até destruí-lo quase que por completo. O eu lírico também relata a dor da incerteza da volta pra casa, e o choro das mães e esposas que nunca mais veriam.
Além da interpretação de letra e música, vale ressaltar a apropriação da canção “Bebe” de Hermeto Pascoal[15], aos 5:13 minutos de Carolina VI.
Todas essas junções especulativas, relacionadas às duas músicas logicamente estão interligadas com as outras faixas do álbum. Resumindo, as faixas não propõem algo intrinsecamente imposto, mas nos deixam livres para interpretações. Muito por conta de que a verdadeira intenção, ao que me parece, era de unir os elementos musicais e históricos para criar uma narrativa mais poética do que propriamente crítica ou reconstrutiva. A maioria das músicas traz o eu lírico narrador como personagens portugueses/europeus/desbravadores na busca de uma terra cercada imaginários fantásticos, semelhantes ao Éden da criação do mundo, cheia de abundância e de riquezas. As temáticas mais abordadas em todas as músicas remetem às aventuras mar (que distância e aproxima das coisas) e às riquezas que enchiam os olhos dos desbravadores. Ou seja, explica bem o nome escolhido para o álbum: Holy Land/Terra Sagrada:
O disco aborda temas pertinentes à nossa realidade de maneira que se faz uma obra capaz de constituir elementos significativos para uma composição do imaginário nacional brasileiro, acarretando na necessidade de se discutir também essa questão. Os princípios morais do homem lusitano divergem do entendimento contemporâneo de moralidade, ainda que esteja incutido em alguns dos homens de hoje. A valorização da riqueza material, busca da fama e a banalização da vida são alguns desses valores que persistem no imaginário popular brasileiro e que no disco são encenados no encontro entre europeus e ameríndios.[16]
O grande lance é que esta “homenagem” às culturas e folclores inerentes à brasilidade não se dão exatamente nas letras, mas sim nas melodias. As misturas são muito bem aproveitadas, e digamos dividiu atenções iguais com o Heavy metal, que é propriamente o gênero que classifica a banda e o álbum. Citando uma fala de André Matos,
“É um grande engano achar que música brasileira é somente percussão, na verdade ela é muito rica principalmente em harmonia e letras. Não é simplesmente colocar um samba no meio do heavy metal e achar que ficou bom, é uma coisa muito sincera o que fizemos, porque música brasileira já está incorporada em quem é brasileiro. (Roadie Crew, Edição n.172, p.39, 2013)
Concluo que umas das intenções mais latentes, quando pensamos em como o Angra trouxe a memória coletiva permanente desde os dias atuais em nossa sociedade, era de criar uma espécie de união harmônica entre Heavy Metal (que vem do estrangeiro, e que por hora permanecia fechado à incorporações) e a combinação de tudo o que o Brasil tem à oferecer, formando o que poderíamos chamar de “modo brasileiro” de fazer/significar o Heayy Metal , considerando nosso contexto social e trajetória histórica.
Haja vista a grande complexidade musical interpretativa de letra e canção que circundam todo o álbum, fizemos aqui um pequeno ensejo sobre as possibilidades intencionais na produção do disco, nunca rejeitando seu contexto, nem tampouco limitando a união dos campos da história e da musicologia. As possibilidades de análises aqui têm proporções muito maiores do que estas mostradas no presente trabalho. Encerro nas palavras do historiador Castilho de Moraes (2015), que também estudou a forma como o Heavy Metal brasileiro se apropriou dos discursos sobre cultura negra e indígena:
A pesquisa e a análise das produções das bandas consideradas permitiram vislumbrar sobre a formação da cultura brasileira enquanto um processo marcado pela miscigenação, mais que biológica, uma mestiçagem cultural, marcada pelas expressões artísticas híbridas. Ao experimentar a fusão de música estrangeira com elementos nativos, as bandas de heavy metal Angra e Sepultura acabaram por criar, sem exageros, uma nova linha de música brasileira, miscigenada, o que é próprio das características da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, a pesquisa possibilitou trazer à vista algo pouco notado no mundo acadêmico: o fato de que o trabalho das bandas brasileiras de heavy-metal, por sua personalidade e força artística, são veículos de divulgação e promoção da cultura brasileira, expondo elementos desconhecidos aos olhares internacionais, cujas características que vão além dos (já 21 tão explorados) produtos carnavalescos. Falta ainda um reconhecimento maior por parte da própria brasilidade.[17]
3. Bibliografia
CARVALHO MADUREIRA, João Vitor. Conceito de “Terra Sagrada” no discurso do disco “Holy Land” da banda Angra. Trabalho de Conclusão de curso, UFBA, 2016.
CASTILHO DE MORAES, William. UNISAL. Culturas negra e indígena no heavy metal nacional. Lorena, 2015.
CHRISTE, Ian. Heavy Metal: a história completa. São Paulo: ARX, 2010.
HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. In: A identidade cultura na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1992. p. 47-64.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª Edição. São Paulo: Copyright Editora, 2003.
RODRIGUES, Icles. Contribuições do Materialismo Histórico e a Lógica Histórica de E. P. Thompsom para a relação entre a História e a Musica. IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014, p 1389-1396.
SILVA, Emanuela Francisca Ferreira. Entre vencedores e vencidos: Reflexões sobre a História, Memória e Censura. Unicor. Estação Literária Vagão-volume 4, 2009.
SILVA, Wlisses James de faria. Heavy Metal no Brasil: incômodo dos perdedores (década de 1980). Tese de doutorado, USP, 2014.
Outras fontes:
REVISTA ROADIE CREW HEAVY METAL & CLASSIC ROCK. São Paulo, Editora: Roadie Crew Ltda, n.172, ano 16, 2013.
4. Vídeos:
Entrevista Angra:
https://www.youtube.com/watch?v=HYFwoDUUmO8&spfreload=1
Entrevista Rafael Bittencourt:
https://www.youtube.com/watch?v=1btDffYslTY
5. Notas de rodapé:
[1] Rodrigues. Contribuições do Materialismo Histórico e a Lógica Histórica de E. P. Thompsom para a relação entre a História e a Musica, 2014.
[2] As contradições aqui referidas pelo autor se referem à unidade do público Heavy Metal que se dá pela união estática e musical, não necessariamente pela identidade ideológica, por isso englobaria vários subestilos, que representariam públicos que vão do mais contestador até o capitalista/consumista.
[3] Silva, Heavy Metal no Brasil: incômodo dos perdedores (década de 1980), 2014.
[4] Encontramos do texto de Silva (2014, p 134) o uso do termo “Cultura de massas”, retirado de Morim, 2009, p 14, onde se diz: “Cultura de massas é uma cultura produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial: propagada pelas técnicas de difusão maciça, destinando-se à uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classe, família, etc).”
[5] Dados apresentados na pesquisa de farias Silva, 2014, baseados nas revistas do estilo na época.
[6] Acesso à entrevista com Rafael Bittencourt:
https://www.youtube.com/watch?v=1btDffYslTY
[7] Carvalho Madureira, 2016, p18.
[8] Carvalho Madureira, 2016, p36
[9] Acesso à entrevista do Angra na MTV: https://www.youtube.com/watch?v=HYFwoDUUmO8&spfreload=1
[10] Entrevista do Angra à MTV, 1996 – Lançamento Holy Land. Fala de Rafael Bittencourt.
[11] Hall, 1992, p50 - 51.
[12] Silva, 2009, p16.
[13] Trecho da musica Lulaby for Lucifer, faixa 10 do álbum.
[14] Crossing é a única musica não composta pelo Angra, com autoria de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), italiano e um dos maiores compositores sacros da Renascença, contexto que abarca também os descobrimentos do Novo Mundo. A abertura é, logicamente, uma música sacra e com vocais líricos distantes, tendo também a presença do som de passarinhos e da floresta, da chuva abundante e dos trovões, das ondas quebrando na beira da praia e alguns passos em madeira. Provavelmente uma representação do catolicismo e do homem branco chegando em terras profanas e abundantes, anunciando a violência que viria a seguir.
[15] Grande compositor, arranjador e multi-instrumentista brasileiro.
[16] Carvalho Madureira, 2016, p37.
[17] Castilho de Moraes, 2015, p 20-21.